Ouvi falar de um povo que adorava o deus da dúvida. Eles não o chamavam por nenhum nome; alguns, às vezes, sugeriam denominá-lo de alguma maneira, mas todos ficavam em dúvida e acabavam não usando nome algum. Também não o adoravam em nenhum templo ou santuário, pois tinham dúvidas de onde instalá-lo.
Só existe uma maneira de adorar o deus da dúvida: duvidando de sua existência. Todos tinham dúvidas de qual seria a melhor liturgia para cultuá-lo, então não havia culto. A fé no deus da dúvida é considerada a pior heresia por seus seguidores. Certa vez, um homem declarou publicamente sua fé inabalável no deus da dúvida; os demais fiéis o prenderam, mas acabaram resolvendo libertá-lo, pois tinham dúvidas do que fazer com ele. De vez em quando apareciam profetas desse deus, mas todos duvidavam deles. Reza a lenda que o maior de todos os profetas foi tão duvidado que desapareceu. Existem muitos ensinamentos atribuídos a esse profeta, mas todos duvidam de sua real autoria.
Tratava-se de uma religião teimosamente monoteísta. Algumas vezes tentaram introduzir no país divindades estrangeiras, mas todos duvidavam delas, e assim nunca houve oportunidade para a formação de um panteão local. Na verdade, eles têm muita dificuldade de acreditar em qualquer coisa. É bem verdade que não aceitam nenhuma mentira, mas também rejeitam todas as verdades. Quando alguém realmente acredita em algo, jamais admite em público, por receio da vergonha.
A maior ofensa entre eles é chamar alguém de "crédulo" ou "crente". Não há pior mancha para uma reputação. Certa vez contaram a um homem que seu vizinho o ofendera, dizendo que ele acreditava em qualquer coisa, mas ele duvidou desse boato, e acabou nada fazendo. De qualquer forma, todos duvidam de todos os boatos, e assim, todas as reputações vivem envoltas pelas névoas da dúvida. Assim acaba a maioria dos assuntos entre eles.
As famílias não são muito unidas, pois os homens geralmente são indiferentes a seus filhos, duvidando de que sejam realmente seus pais. Como os filhos duvidam de sua paternidade, geralmente não se apegam aos pais. As mulheres duvidam que seus filhos serão boas pessoas, e assim não se empenham muito em sua educação. Homens e mulheres geralmente duvidam de que seus casamentos possam persistir, e assim os matrimônios geralmente duram poucos anos.
Esse povo não apresenta muitas realizações, pois mal uma pessoa iniciava uma obra se via assaltada por dúvidas em sua execução, e logo deixava o trabalho de lado. É por isso que nesse país não se encontram livros, canções, esculturas ou mesmo habitações. De fato, todas as formas de técnicas e artes são pouco desenvolvidas, pois eles duvidam de suas próprias capacidades de aprender qualquer ofício.
Eles levam uma vida muito simples, e quase não há comércio, pois todos duvidam da qualidade dos produtos. Também não existe dinheiro, pois todos duvidariam da autenticidade das moedas. Ninguém empresta nada aos amigos ou vizinhos, pois duvidam que será devolvido.
É uma cultura fechada em si mesma, pois eles não viajam, duvidando das condições que encontraram pelo caminho. Presa de tantas dúvidas, essa sociedade quase não mudou ao longo do tempo; ninguém almeja um futuro melhor, pois o futuro é duvidoso. Como também vivem em dúvida sobre o que aconteceu no passado, não se apegam às tradições. E assim, duvidando do passado e do futuro, vivem num eterno presente.
Um velho viajante me contou tudo isso, mas eu duvido que seja verdade...
quinta-feira, 30 de julho de 2015
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