Ontem vi um produto, no mínimo, inusitado: uma tesoura a pilha. O usuário precisa apenas segurar num cabo e apertar o botão, que as pontas começam a se mover e cortar sozinhas. Isso me fez refletir um pouco sobre a enorme quantidade de bugigangas que a nossa sociedade produz sob o rótulo de "inovação tecnológica". O homem contemporâneo exprime uma necessidade absurda de fazer toda e qualquer coisa com algum tipo de tecnologia "inovadora", mesmo que no fundo elas sejam muito menos práticas ou desnecessárias, uma complicação inútil do que poderia ser feito de modo muito mais simples pelos métodos tradicionais. Afinal de contas, não é tão cansativo ou trabalhoso manusear uma tesoura; além do mais, o aparelho só move as pontas, ou seja, o usuário de qualquer forma tem o trabalho de segurar o papel e a tesoura e ainda guiá-la para fazer o corte. Ou seja, a aparente inovação poupa apenas uma ínfima parte do trabalho.
Duas lembranças me vêm à mente nesse sentido. Certa vez vi numa loja um embaralhador elétrico de cartas, o que me causou muito estranhamento: a diversão seria, então, o domínio da eficiência, da produtividade? E o prazer de pegar as cartas, manuseá-las, embralhá-las, onde ficaria? Mesmo nas coisas mais pessoais essa sanha hi-tech teima em introduzir máquinas impessoais para realizar as tarefas mais simples. Outra das coisas mais absurdas que já vi era um pegador de azeitonas a vácuo (!). Não seria muito mais simples usar a tradicional colher que, além do mais, realiza inúmeras outras operações como pegar cerejas, champignons, e inúmeras outras coisas? Sem falar, é claro, que serve para pegar três ou quatro azeitonas de uma vez só, ao contrário do "revolucionário" pegador de azeitonas (a vácuo, não nos esqueçamos, já que tudo que faz algo "a vácuo" parece intrinsecamente inovador). De fato, parece-me que a colher sim é uma grande invenção, por sua praticidade e versatilidade, embora tenha mais de dois mil anos.
Esses exemplos são os mais absurdos, mas essa tendência está sempre por aí, nos aparelhos aparentemente mais úteis, como, por exemplo, espremedores de laranja ou picadores de legumes elétricos. Embora, de fato, realizem a tarefa muito mais rapidamente que uma faca ou um espremedor convencional, essas máquinas requerem posteriormente um processo de desmontagem e lavagem tão trabalhoso que acabam por ser menos práticos que os métodos comuns. Minha tia possuía inúmeros desses fantásticos produtos, que nunca usava pelo trabalho que a limpeza constituía. Isso sem falar que um picador elétrico ocupa um espaço muito maior que uma faca...
Chega a ser perturbadora essa ânsia por inovar e fazer as coisas sempre com complexidade maior, maior, maior... Bigger, better, greater... De fato, certas máquinas, como os citados espremedores de laranja ou picadores de legumes podem ser extremamente úteis em determinados contextos, como num restaurante ou numa lanchonete, onde são servidas centenas de saladas ou laranjadas por dia e o processo de limpeza realmente seja compensado pela quantidade de trabalho manual poupada. Mas para uso residencial? Leva-se mais tempo lavando o aparelho que consumindo a laranjada! E é exatamente aí que reside todo o absurdo da lógica da inovação a qualquer custo: somos levados a trazer uma estrutura industrial, de produção em massa, para nossa vida pessoal, particular, íntima, cotidiana. A sociedade estimula-nos insanamente a transformas nossos lares em miniaturas de fábricas e de sua insana produção em série, numa bizarra padronização da intimidade. Realmente perturbador.
Contudo, parece que isso não é algo tão recente. Vejamos esse trecho do conto Civilização, embrião do romance A cidade e as serras, do brilhante Eça de Queirós, que descreve os apetrechos de escrita do personagem Jacinto:
"Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e sutis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas".
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3 comentários:
Eu conheço esta tesoura, aliás, eu tive uma há uns 10 anos, talvez mais, era quase como um brinquedo (acho que minha irmã ainda tem a dela, era vermelha) - era um objeto lúdico, simples diversão, como um carrinho que bate na parede e volta, nada além disto. Mas este era o meu uso, decerto muito diferente daquele no qual será empregado "de verdade". Não vou, porém, ficar falando disto. Acredito que, antes de mais nada, toda esta pequena "estrutura industrial" não deixa de representar, diante da maneira como é utilizada/exposta, símbolos de status, mas isto é mais do que óbvio, então acho que devemos ir além desta consideração para pensarmos em outra: o mundo, aquilo que minha cara Hannah Arendt chamaria de "mundo-entre-os-homens", ou seja, tudo aquilo que existe a nossa volta e foi por nós construído, tudo o que existe quando nascemos e continuará a existir quando morremos, é cada vez mais um mundo dos objetos, e nós estamos sendo empurrados para fora deste mundo. Primeiro, porque nós não produzimos mais, não criamos, nós apenas consumimos - nossas mãos não trabalham, mas somente executam tarefas como pressionar, apertar, girar, etc. Segundo, estes objetos são transformados no centro da existência, tudo gira ao seu redor e tudo deve conformar-se a eles. Basta pensar em programas de vendas, onde estão expostos objetos como estes: no centro há somente o espremedor, a atenção está nele, e o ser humano é reduzido a um par de mãos (que se limita a apertar, pressionar, girar) e a uma voz cuja função não é outra a não ser, desculpe-me o exagero, idolatrar o objeto. O mundo-entre-os-homens, cada vez mais, perece, ou melhor, ele passa a existir apenas como subsidiário do mundo-dos-objetos, cuja efemeridade põe em risco aquele primeiro. Uma sociologia dos objetos já foi anunciada e, parece-me, deve ser levada a sério bem como uma história dos objetos, não para sua exaltação, mas como instrumentos capazes de levar a uma melhor compreensão de seus efeitos sobre nós.
Comentário interessantíssimo. Sua análise sobre os programas de televendas me parece bastante acurada. E me parece que nesse caso "idolatria" é um termo bastante apropriado. No fundo, estamos ainda diante da felicíssima noção de "fetiche" como elaborada por Marx, não?
Curioso você falar sobre uma "história dos objetos", tenho pensado bastante nessa possibilidade, enfim, na análise histórica dos objetos e de seus significados culturais.
Nesse contexto, as já clássicas "Organizações Tabajaras" surgem como uma das sátiras mais sagazes às inutilidades modernas...
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